30.3.12

Canto Vigésimo terceiro

Esta manhã meu irmão procurava
qualquer coisa nas gavetas: remexeu
no armário, nos bolsos dos casacos,
dos capotes e de cabeça e mãos
na cómoda tirou tudo para fora.
Virou do avesso até a cozinha.
Passava de um quarto para outro
sem me ligar.
Quando começou a revistar a minha cama
perguntei-lhe: que procuras?
Não sei. Primeiro procurava um prego,
a seguir um botão, depois queria fazer café
e agora preciso que me digas alguma coisa,
nem que seja uma tolice.

Tonino Guerra; O Mel
Tradução de Mário Rui de Oliveira; Assírio & Alvim

25.3.12

Cartas da tarde

Se fosse de dar ordens ao princípio do dia, havia de dizer
ordena as horas sem pressa, que a tarde tem muito tempo,
assim o vento dispõe as folhas,
e vai dando à luz o amolecimento da tardinha;
preciso dizer à noite
demora o que quiseres, as folhas estão aconchegadas.

21.3.12

Poesia também é atenção, ou seja, leitura em muitos planos da realidade à nossa volta, que é a verdade em imagens. E o poeta, que vai desfazendo e recompondo essas imagens, é também um mediador: entre o homem e o deus, entre o homem e o outro homem, entre o homem e as regras secretas da natureza.
Os gregos foram seres desdenhosos da imaginação: a fantasia não encontrou lugar no seu espírito. A sua atenção heróica, irremovível (cujo exemplo extremo é talvez Sófocles) sem cessar estabelecia relações, e sem cessar separava e unia, num esforço permanente de decifração tanto da realidade como dos mistérios. Os chineses meditaram durante milénios do mesmo modo, em torno do maravilhoso Livro das Mutações. Dante, por mais escandaloso que possa soar, não é um poeta da imaginação, mas da atenção: ver almas a contorcer-se no fogo e no azeite a ferver, ou entrever no orgulho um manto de chumbo, é uma suprema forma de atenção, que deixa puros e incontaminados os elementos da ideia.

- Cristina Campo, Os Imperdoáveis;  tradução de José Colaço Barreiros; Assírio & Alvim -




8.3.12

40.  ELA E ELE ALTERNADAMENTE


- Pressinto um outro mundo.

- Terá que passar a história inteira
até que o dia de hoje chegue aos olhos.

- Aos que persistem...

- ...que hão-de ver as brumas sobre os rios
que as transportam ao coração da terra.

- Estamos aqui parados
 até que a luz nos veja.


         Vem a luz.
O Teatro ilumina-se.
O palco está deserto.

- Pedro Tamen; Um Teatro às Escuras; Publicações Dom Quixote, 2011 -

7.3.12

No regresso à casa, sento-me na soleira, viajante duvidoso;
quero entrar despojado, até do vento e das palavras que lhe emprestei,
e fazer a conta ao que ainda pesa.
Trago bagagem a mais, mas alguma coisa preciso levar e leve tem de ser.
Palavras, poucas, que sou filho do silêncio da casa que me chama.
Alforge, há muito o larguei. Mas muito sujo se colou na pele, palavras inúteis.

Menino de escola, safo as letras a mais.
Limpo os olhos, que neles trago a bagagem essencial, peregrino de muito pó.
Liberto me exijo, que a espera é como as águas maternas, singelas e disponíveis,
vida e a morte, irmãs gémeas sempre juntas.

Na hora do silêncio maior, o da mesa posta, lareira acesa, vou entrar.
Ligeiros estarão os olhares: muitas águas os lavaram.

E, menino de escola, levo a flor que aprendi nos caminhos.

2.3.12

À Maria
Ao Alan
À Guiomar 

Dizíamos: mãe, o escuro dói, os pássaros têm frio.

As mãos da mãe  cresciam muito alto,
tocávamos o tecto da casa,
descia-nos devagarinho.

Os olhos iam dormindo sonhos cheios de luz.