26.12.14

23.12.14

    Ele pensa nos seus três filhos que neste momento brincam junto à lareira.
Brincam, trabalham, não se sabe.
Trabalham ajudando a mãe, não se sabe.
As crianças não são como os homens.
Para as crianças, brincar, trabalhar, descansar, ficar quieto, correr, é tudo a mesma coisa.
Uma só coisa.
É tudo igual, eles não fazem diferença.
São felizes.
Divertem-se o tempo todo. Quando trabalham ou quando brincam.
Nem reparam nisso.
São felizes.
Têm as suas regras. As mesmas regras de Jesus.
Do menino Jesus.
E também a esperança é a que se diverte o tempo todo.

    Ele pensa nos seus três filhos que brincam a esta hora ao canto da lareira.
Oxalá estejam felizes.

Charles Péguy, Os Portais do Mistério da Segunda Virtude; tradução de Armando Silva Carvalho; Paulinas Editora, 2014

5.12.14

(...)
Vê que não me afastei e continua: "Quando temos uma saudade, não é falta, é presença, é uma visita, chegam pessoas, países, de longe e fazem-te alguma companhia." Com que então, dom Rafaniè, todas as vezes que sentir uma falta, terei de lhe chamar presença? "Claro, que é para dares as boas vindas a cada falta, para a receberes bem." Então depois de teres voado, eu não devo sentir a vossa falta? "Não, diz, quando calhar pensares em mim, eu estarei presente."

Erri de Luca; Montedidio - Trad. de Simonetta Neto; Bertrand Editora, Lisboa 2012

1.11.14

" O coração do homem dispõe o seu caminho."
(Livro dos Provérbios, 16, 9)

Um caminhará para as montanhas,
no alforge a luz dos que morreram.
Há-de ver o irmão,
mãos das auroras buliçosas.

Seguirão seus caminhos,
que a vida é sol nascente,
fazedor de muitos dias.
É também mar de pontos luminosos.

22.10.14

Oferenda

"Inclina o ouvido do teu coração"

a cada palavra mil silêncios
música pequenina flauta,
bicho da seda flores de macieira

isto sei oferecer
água a enlear os seixos
saudosa das nascentes das palavras todas.

"Inclina o ouvido do teu coração".

15.7.14

O essencial fermenta no coração das palavras,
afável dormitório ventre paciente.

Espaçados são os seus murmúrios,
fontes esquivas mas lindos como o trigo.

As aves dormem nas searas,
não tarde vento benigno.

2.7.14


O Poeta

O poeta é igual ao jardim das estátuas
Ao perfume do Verão que se perde no vento
Veio sem que os outros nunca o vissem
E as suas palavras devoraram o tempo.

Sophia de Mello Breyner Andresen, No Tempo Dividido

27.4.14

Apesar de muitas coisas

Hoje sentei-me a olhar o quintal.
Passa um vento benigno a pentear as margaças.
Vem dos montes, traz luzes antigas, banhos de sol. Apesar de tudo.

Colmeal da Torre, 25 de Abril de 2014

20.4.14

As Flores

Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
De uma manhã futura.

Sophia de Mello Breyner Andresen; No Tempo Dividido

18.4.14

Pietà (Escultor José Rodrigues) -  Catedral Bragança-Miranda

Agora completou-se o meu sofrimento e inominavelmente
dele estou repleta. Fico imóvel como o interior
da pedra fica imóvel.
Dura como estou, uma coisa apenas sei na minha dor:
Tu cresceste
e cresceste,
para te elevares
como dor desmedida
muito para lá da medida do meu coração.
Agora jazes atravessado no meu colo,
agora já não Te posso
dar à luz.


Rainer Maria Rilke; A Vida de Maria - Trad. e Pref. de Maria Teresa Dias Furtado; Portugália Editora, 2008.



10.4.14

Se tudo ao  menos uma vez se calasse
Rilke; O Livro de Horas - Livro Primeiro, O Livro da Vida Monástica; trad. de Paulo Quintela

É bom haver coisas a que já não queremos dar o nome. Ou que não têm nome. Sabemo-las e não precisam ser chamadas, como as flores e as cores se conhecem.

O acidental não tem modos, anda por aqui e por ali; se não lhe damos um nome, não sabemos chamá-lo ou repeli-lo. E ele é tanto luminoso como obscuro.

Não seja preciso dizer meu amor; amo-te, também não.
Desenhe-se por dentro das pálpebras a luz e a sombra, como, pequeninos, escrevíamos os dedos e as mãos da mãe e sorríamos.

O essencial é como as fontes, conhecemo-las e vemo-nos nelas. São a luz e a frescura.
Não é preciso nomeá-lo.

27.3.14

A horta de meu pai

Ele ampara a altura
de incontáveis plantas e rebentos
estende a cal, espera a floração
em sítios desabrigados
pergunta-se: este caminho tem coração?

quando reparo na horta desde o terreiro da casa
não me parece que esteja ali,
mas em qualquer passagem inacessível
na fronteira avançada
que me arrasta para uma verdade

as groselheiras pendem dos muros
a tudo o sol concede a exacta porção

José Tolentino Mendonça; Estação Central - Assírio & Alvim, Setembro de 2012

21.3.14

Não são frios os silêncios

Vamos por desperdícios amorosos
tarde doce, olhos palavra

mãe sentada no balcão a ver os pássaros na cerejeira,
língua de fumo das casas antigas.

Delicados são alguns patamares da vida
e íngremes as escadas do silêncio.

Onde passa o vento de todo o lado,
o alto das árvores é de palavras lavadas.

O silêncio chama os frutos pelo nome.

28.1.14

A Avó


Tinha ao colo o gato velho
cansadamente passando
a sua branca mão pelo
pêlo dele preto e brando

Sentada ao pé da janela
olhando a rua ou sonhando-a
todo o passado passando
a passos lentos por ela

Dormiam ambos enquanto
a tarde se ia acabando
o gato dormindo por fora
a avó dormindo por dentro

Manuel António Pina; Os Livros; Assírio & Alvim, 2003

27.1.14

A Borboleta

(Do filme O Rapaz do Pijama às Riscas)

Contente mesmo contente
estive na vida muitas vezes
mas nunca como na Alemanha
quando me libertaram
e me pus a olhar uma borboleta
sem vontade de a comer.
Tonino Guerra; Histórias de uma Noite de Calmaria; tradução de Mário Rui de Oliveira; Assírio & Alvim; 2002

19.1.14

Tinha duas hortas para se ocupar.
Nas manhãs orvalhadas, prendia-se às margaridas que lhe lembravam a adolescência. E, aos domingos, era sempre um gosto se podia lembrar as corridas para a escola onde se perdia a olhar para a rapariga que tinha olhos de sol da manhã. A alegria dos domingos tinha uma ponta de amargura.

Era nos dias santos que lhe sobrava tempo para ter lembranças.

Os dias de trabalhar eram-lhe tempo cego; passava-os no outro quintal, trabalhava muito para não dar conta da demora dos domingos; nunca soube se havia neles pingas de orvalho.

Ao domingo saía cedo da cama. Quando as margaridas piscavam luzes de muitas cores, ficava pensativo, mas dizia sempre bom dia a quem passava por se lembrar de quando ia para a escola. As pessoas pensavam que era feliz.

Às vezes apanhava uma flor, tirava-lhe as pétalas, bem-me-quer-mal-me-quer, e levava para casa o sol da manhã. Quase contentes.


Colmeal da Torre, 19 de Janeiro de 2014